Selvageria
Viver é luxo.
- Rodrigo S.M.
...começa em um quarto de hotel, em uma outra cidade que não a minha. Começa em Buenos Aires. Começa depois do meu último fracasso, um livro “sem qualquer qualidade visível – ou invisível”. Não é sobre mim, também, não é sobre a minha fuga. Mas é importante que comece aqui, e não em outro lugar, e que comece agora, e não antes.
Estou sozinha, como nunca. Aceitei meu destino, e abracei minha solidão: havia dois caminhos, o da arrogância e o da resignação. Escolhi o segundo, e venho buscando o que é selvagem em mim, até que encontrei, sem querer, essa história. Uma história que não é. Uma história de nãos, de vazios, de erros, de personagens inventados e superficiais. Não é uma resposta para o meu fracasso, não quero que seja, ou sequer o oposto do que fui antes. Sou eu em minha solidão, olhando a solidão de outro, esse homem que passa e leva consigo um guarda-chuva em dia de sol. Ele é o que eu quero agora: não eu. Se falei de mim foi para me distanciar dele. Voltarei a falar de mim, porque escrevo, e escrevo porque preciso buscar algo que ainda não sei o que é. Mas é dele que quero falar. Um homem cinza, que não precisa ser portenho: queria que ele fosse de onde eu sou, de Brasília, sob o sol, em dia seco, com um guarda-chuva em meio ao deserto. Digamos que essa história, apesar de começar aqui, com um homem que na verdade passa talvez em uma Palermo literária, que não é minha, se passa em minha cidade natal então. O homem vai ter um nome que ainda não se revelou, talvez Daniel, talvez Rodrigo. Eu tenho nome, mas ele não diz nada, não é substantivo. Eu sou borgeana, clariceana, machadiana, nunca eu. Vanessa M.S. é um nome sem pessoa. Indica um vazio do qual não quero, mas falo. Talvez, para poucos, indique ausência de qualidade. Mas não importa: não quero escrever com qualidade. Quero escrever, e quero escrever sobre Daniel.
Daniel vive na Asa Norte, em uma comercial. Eu o vi, estou quase certa. Vive sobre uma padaria, o que não o incomoda. Preciso dizer que ele ainda não tem sobrenome, porque não tem história. É como se tivesse nascido hoje, enquanto escrevo, do mesmo modo que eu nasço a cada letra. Digamos que no sétimo dia ele tomou vida e foi: saiu de casa carregando um guarda-chuva. Foi para o trabalho, é funcionário público. É um fantasma, em uma cidade fantasma. Não é um desses funcionários públicos jovens, abastados, que tomam Brasília com suas jovens famílias e suas pick-ups brilhantes. Ele é um pequeno burocrata, um homem de meia idade que virou funcionário público quando ainda não era luxo sê-lo. Um homem fora do tempo, sempre atrasado. Com o suficiente para viver, nada mais. Não lhe ocorreria que pudesse ser feliz, então também não era triste. Fisicamente, não tinha nenhum traço que o distinguisse: não era nem muito magro, nem muito gordo, nem muito bonito, nem muito feio. Era assim, de um jeito que não se explica. Era como se apenas fosse. Um fantasma.
Era como se pedisse licença para estar vivo, ainda que ninguém lhe negasse o direito de estar vivo. Não pedia a ninguém, mas era como se pedisse. Não sei se era assim que se sentia, mas olhando de fora, era como se não se sentisse vivo. Não posso dizer com certeza, mas parece que tomava a vida como tomava seu trabalho: com seriedade, mas sem gravidade. Nada importava, porque, assim como em seu trabalho, era como se ele apenas fosse parte de algo maior, tão grande que ele, sozinho, não fazia sentido. Sem o seu carimbo, as coisas ainda assim se moveriam, as decisões seriam tomadas, as pessoas continuariam seus trabalhos, suas vidas. Ele disse uma vez que não sabia bem de onde vinham os papéis que carimbava, nem muito bem para onde iam. Ele não sabia muito bem o que fazia. É assim que ele vivia, como se não soubesse de onde viera, ou para onde iria.
Alguém uma vez disse para seus antepassados que nós, seja quem formos, também somos história. Daniel é também história. Ele toma decisões porque está inserido e é parte da história. Mas só suas decisões terão que ser suficiente, porque não sei do seu passado, sua história pessoal. Posso adiantar que não antevejo um final trágico, que ele não vai ser atropelado, ainda que Brasília seja a cidade ideal para ser atropelado. Daniel também não é dado a saber do futuro. Ele é um homem que vive no presente, de coisa à coisa. Mas ele vai tomar decisões, porque a história vai impô-las, precisa fazê-lo. Para começar, ele decidiu levar o guarda-chuva, apesar de ser um dia seco, como a maioria dos dias. Ele decidiu sair de casa também, assim como decidiu pegar ônibus, descer na parada certa, entrar no prédio em que sempre entrava, cumprimentar as pessoas que sempre cumprimentava, e sentar atrás da mesa que se repetia. Ele decidiu, como talvez decidira todos os dias há alguns anos, não fazer história. Ele decidiu não sair do personagem, não ser diferente de si, um herói ou um vilão. Ele decidiu ser o fantasma que era. Nesse dia, ele ainda se apresenta, e é importante para mim que ele faça tudo exatamente como faria.
Ele não usa chapéu, porque as pessoas ao seu redor também não usam. Há muitas coisas que não faz, nem sempre porque os outros não fazem. Há coisas que não faz porque não imagina que possa fazer: por exemplo, não dança. Não que não gostaria de dançar, ou que não houvesse situações para dançar. Apenas não dança, assim como não ouvia musica alto, não faltava serviço, não tomava refrigerante. Muitas coisas não fazia por falta de imaginação, ou vontade, ou necessidade. Não escrevia, por exemplo, porque não precisava. Conversava, mas não dizia muito. Não era o centro das atenções, mas também não era um excêntrico. Era mais um, igual aos outros à sua própria maneira.
Eu me pergunto por que é que ele desperta algo em mim. Ele não é muito diferente de mim, a não ser por algumas coisas que não faz. Não é uma pessoa interessante, à primeira vista. Talvez me interesse pelo que não sei dele, pelo que posso imaginar. Posso dar-lhe qualquer destino, e isso é tentador. Por que não lhe dar o melhor? Eu espero que ele resolva fazer algo que nunca tenha feito, ou que eu possa lhe dar algo que a vida não pôde. Como ele vai reagir em frente ao espelho, eu me pergunto, o que ele vai fazer depois das oito horas de trabalho. Hoje, o dia em que ele começa, ele apenas faz o que sabe fazer, do jeito que sabe fazer. Trabalha, é gentil, pega ônibus, come sem muita vontade, ama sem muito amor, pensa sem muito esforço, anda sem muita perna, cresce sem muita altura, desce do ônibus sem pressa, sobe ao seu apartamento sem rumo, escova os dentes sem medo de ter cárie, toma banho sem se preocupar muito com a higiene dos pés, olha pela janela sem ver qualquer coisa, e vai dormir, ainda que não tenha muito sono. Amanhã será outro dia para Daniel, e eu não estarei mais aqui.